O ressentimento e a extrema direita em SC
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- há 23 horas
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BREVE ENSAIO
Por: Alana Lazaretti Solvalagem*
Há noites em que Santa Catarina parece escutar vozes antigas. Elas roçam as paredes de madeira das casas coloniais, deslizam pelos salões das festas tradicionais, ecoam nos vales como se procurassem corpos onde pousar. Às vezes, encontram. Nesses corpos, o ressentimento se instala devagar, como um animal que primeiro fareja, depois arranha, depois ocupa tudo. E quando abre os olhos dentro do sujeito, ele já não sabe onde termina sua dor e começa o ódio que agora o atravessa.
A presença significativa de células neonazistas em Santa Catarina - uma das maiores concentrações do país, segundo pesquisas etnográficas da antropóloga brasileira Adriana Dias - não pode ser compreendida apenas como um desvio marginal ou como um fenômeno restrito ao submundo digital. Ao contrário, ela expressa uma dinâmica histórica e contemporânea que articula ressentimentos coletivos, discursos identitários e estruturas psíquicas predispostas ao autoritarismo, alimentando a radicalização política, a violência e, de forma alarmante, a violência política de gênero. A partir de uma leitura que integra o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a psicanalista brasileira Maria Rita Kehl e o filósofo Theodor Adorno, é possível compreender como esses elementos se interpenetram na formação de subjetividades que tornam possível a emergência de grupos extremistas e práticas políticas violentas no estado.
O Estado de Santa Catarina, frequentemente idealizado como espaço de ordem, progresso e herança cultural europeia, constitui um terreno fértil para a mobilização de afetos ressentidos. Aqui, a leitura nietzschiana do ressentimento oferece uma chave interpretativa importante: para Nietzsche, na obra “Genealogia da Moral: uma polêmica”, o ressentimento é o afeto de quem, impossibilitado de agir autenticamente sobre o mundo, converte sua impotência em uma moralidade reativa, baseada na necessidade de identificar e punir culpados imaginários.
Essa dinâmica se torna politicamente explosiva quando grupos sociais passam a interpretar mudanças sociais, econômicas ou demográficas como perdas irreparáveis que exigem reparação moral. O ressentimento torna-se, assim, uma lente para interpretar a proliferação de células neonazistas no estado: nesses grupos, sujeitos ressentidos encontram não apenas uma explicação simplificada para seu mal-estar, mas uma identidade moral que legitima a hostilidade ao outro e a promessa de restauração de um passado idealizado.
CÉLULAS NAZISTAS: CRESCIMENTO SILENCIOSO
Muitas células neonazistas crescem não com grandes manifestações, mas com conversas íntimas, suaves e metódicas. Primeiro vêm os mêmes - humor corrosivo mascarado de ironia. Depois os “estudos históricos” enviesados e falsos, links para fóruns secretos com conteúdos extremistas, misóginos, puristas, recalcados. Em seguida, convites para encontros discretos: “um acampamento entre amigos”, “uma comemoração da cultura europeia”. Na trilha, entre pinheiros, alguém saca uma bandeira com símbolos nazifascistas e supremacistas. Ninguém protesta. Um ou dois sorriem. O silêncio faz o resto.
Maria Rita Kehl, psicanalista brasileira que tem um vasto estudo sobre o ressentimento alinhado com discursos autoritários e que publicou o livro “Ressentimento” em 2020, poderia dizer que ali o ressentido encontrou reconhecimento. Não um reconhecimento verdadeiro, mas uma espécie de abraço torcido: “você importa porque temos um inimigo em comum te perseguindo”. Essa lógica conspiracionista hipnotiza. Dá forma ao caos interno. E logo a pessoa, que antes apenas sofria calada e isolada, passa a vigiar, denunciar, odiar e agredir.
A autora amplifica esse diagnóstico ao destacar o papel dessa busca por reconhecimento na constituição do ressentimento. Ela mostra que o ressentimento emerge quando sujeitos se percebem injustiçados, desconsiderados ou deslocados do centro da cena social. Muitas vezes, o ressentido não encontra discurso ou espaço legítimo para elaborar sua frustração, recorrendo a fantasias de injustiça e a figuras de supostos inimigos.
O AUTORITARISMO E A AUTOESTIMA FRAGILIZADA
Em Santa Catarina, a ascensão de grupos neonazistas e de discursos extremistas parece estar profundamente ligada a uma ferida narcísica coletiva, na qual a diversidade cultural, os avanços de minorias e a presença crescente de mulheres no espaço público são vividos como afrontas a um imaginário regional homogêneo que jamais existiu. Os grupos de extrema direita oferecem, então, uma forma de reconhecimento invertido: o pertencimento a uma coletividade autoritária funciona como compensação simbólica para uma autoestima fragilizada.
Esse mecanismo aparece claramente no discurso político extremista que circula em algumas regiões no Estado: o migrante nortista e nordestino, imigrantes de países latino americanos, o pobre urbano, o servidor público, a mulher que reivindica direitos, a população negra e indígena - todos podem ser transformados na figura do “usurpador” que estaria corroendo a sociedade. Assim, o ressentimento funciona como cola afetiva de coletivos autoritários.
Essa dimensão subjetiva entrelaça-se com a teoria da personalidade autoritária desenvolvida pelo filósofo Adorno e colaboradores em uma vasta e profunda pesquisa publicada no livro “Estudos sobre a Personalidade Autoritária”. A partir da Escala F, Adorno identifica traços como convencionalismo rígido, submissão a figuras de autoridade, agressividade contra grupos percebidos como dóceis ou desviantes, anti-intelectualismo e obsessão com pureza e disciplina. Esses traços não se restringem a indivíduos isolados, mas podem formar um ethos cultural predisposto à adesão a ideologias extremistas. Em Santa Catarina, a combinação entre idealizações de pureza cultural, tradições conservadoras e a valorização de uma ordem rígida gera um ambiente propício à ativação dessas disposições autoritárias, que não apenas sustentam discursos de ódio, mas também legitimam práticas violentas.
A ARTICULAÇÃO EXTREMISTA
Se, em Nietzsche, o ressentimento é uma resposta moral ao sentimento de impotência, em Adorno ele se converte em predisposição psicossocial que sustenta práticas discriminatórias e adesão a discursos extremistas. Em regiões onde valores tradicionais, disciplina, ordem social e uniformidade cultural são altamente valorizados - características presentes em parte do imaginário social de alguns catarinenses com ascendentes europeus -, esses elementos da personalidade autoritária encontram condições privilegiadas para se articular a projetos políticos de extrema direita.
A conjugação entre ressentimento (Nietzsche e Kehl) e estrutura autoritária de personalidade (Adorno) também ajuda a explicar por que discursos baseados em medo, moralismo e hostilidade a diferenças têm ressonância. A extrema direita se fortalece justamente por oferecer uma narrativa que canaliza o ressentimento em direção a alvos simbólicos e, simultaneamente, legítimas disposições autoritárias sob a promessa de segurança e restauração da ordem.
O mais inquietante, porém, é o silêncio cúmplice - o silêncio que se mascara de neutralidade. O morador que comenta: “esses meninos das suásticas são só bobos”. O tio que ri das piadas racistas “porque faz parte da cultura”. A mãe que repreende a filha feminista: “não provoca, você sabe como eles são”. É assim que o ódio circula sem chamar muita atenção: protegido por desculpas, relativizações, risadas. O risco vai se espalhando como pólvora. A fronteira entre sugestão e ameaça evapora. O medo vai moldando a fala antes da fala. Vai dobrando a espinha antes de o corpo se mover. O objetivo é silenciar. Fazer com que ela pense, antes de cada discurso, se vale a pena ser mulher (ou negro, indígena, (i)migrante, progressita) e falar.
Nesse contexto, a radicalização da violência política torna-se visível e palpável. A polarização política recente intensificou a compreensão do adversário como inimigo, e não como competidor legítimo no campo democrático. A violência se torna linguagem, método e símbolo. Quando olhamos para a violência política de gênero, este cenário se revela ainda mais grave. Mulheres que ocupam posições de destaque - como parlamentares, jornalistas, professoras, artistas, militantes e/ou gestoras públicas - tornam-se alvos preferenciais do ódio autoritário. A misoginia opera como matriz estruturante dos discursos extremistas, pois a presença da mulher no espaço público desestabiliza a ordem patriarcal que sustenta tanto o conservadorismo tradicional quanto o neonazismo. O corpo feminino, nesse sentido, transforma-se em campo de batalha simbólico: ameaças de estupro, chacotas sexualizadas, campanhas de difamação e ataques coordenados nas redes sociais tornam-se instrumentos eficazes para silenciar e expulsar mulheres da vida pública e política.
Ainda sobre a articulação entre ressentimento, busca por reconhecimento e personalidade autoritária, ela propicia o entendimento do motivo que a violência política - especialmente a violência política de gênero - não é um efeito colateral da radicalização de extrema direita, mas sua própria lógica de funcionamento. A misoginia, o racismo e a violência não são meros excessos, são elementos centrais do imaginário de pureza e ordem que esses grupos buscam restaurar. O neonazismo, nesse contexto, representa a forma extrema e explícita dessa lógica, mas sua base psíquica e simbólica encontra ressonância mais ampla no tecido social catarinense, especialmente quando alimentada por discursos legitimadores propagados em redes digitais e ambientes políticos polarizados.
Assim, compreender a radicalização da extrema direita em Santa Catarina exige enfrentar suas raízes simbólicas, afetivas e estruturais. Isso implica reconhecer que o ressentimento não desaparecerá com repressão policial, e que o autoritarismo não será desmontado por argumentos racionais apenas. É necessário ativar políticas públicas que promovam reconhecimento mútuo, fortalecer a educação crítica, desconstruir mitos identitários excludentes e proteger a atuação política das mulheres, que têm sido alvo direto da violência produzida por esses afetos sociais distorcidos. A democracia só se fortalecerá quando for capaz de desarmar as subjetividades ressentidas que buscam no ódio uma forma de pertencimento e quando impedir que a violência - sobretudo a violência contra minorias - continue a ser instrumento de disputa política. Enfrentar a extrema direita radical, portanto, é também enfrentar o ressentimento, o patriarcado e a estrutura autoritária que sustentam seus discursos e práticas.
RESISTÊNCIA CATARINENSE
Devemos lembrar sempre que Santa Catarina há também resistência. Nem sempre explícita, às vezes quase sussurrada - mas viva. Mulheres que seguem falando apesar das ameaças. Professores que continuam ensinando apesar das listas de denúncia. Jovens que reescrevem os muros pichados, pintando sobre a suástica uma flor, um poema, um manifesto. A democracia, mesmo golpeada, insiste. E talvez seja esse o gesto mais radical: persistir. Porque o que o ressentimento mais deseja é o silêncio - o silêncio dos corpos que desiste, das vozes que se retraem, das ideias que murcham. Resistir, então, não é apenas falar. É existir diante de quem prefere que você não exista.
Santa Catarina, com todas as suas contradições, certamente não está condenada. Mas está sendo disputada - e a disputa se dá no nível das formas de vida. O que está em jogo não é apenas a política institucional, mas os modos como sentimos uns aos outros. Se o ódio é pedagógico, o cuidado também pode ser. Se a violência é contagiosa, a coragem também é.
E, no fim, será a coragem - não a força - que impedirá que o ressentimento governe.

**Alana Lazaretti Solvalagem é Psicóloga Clínica e Mestre em Psicologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina.
Referências bibliográficas
Adorno, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
DIAS, Adriana Abreu Magalhães. Observando o ódio: entre uma etnografia do neonazismo e a biografia de David Lane. 2018. 366 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018.
Kehl, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Boitempo, 2020.
Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.





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