O tempo dirá se o novo governo vai conseguir, com entrega de resultados, se impor às mentiras e ao ódio disseminado pelas redes sociais
Por EUGÊNIO ARAGÃO*
Foto: Lula Marques
Desde 2016, com o golpe parlamentar desferido contra a Presidenta Dilma Rousseff, a palavra que mais circula na crítica política é “fascismo”. A ruptura do caminho democrático trilhado a partir da Constituição de 1988 deixou muitas marcas. Mas, a mais severa delas foi a desconstrução das políticas públicas de redistribuição de renda e suporte aos socialmente mais vulneráveis. Tirou-se de quem nada tinha. Paralelamente, disseminou-se discurso e sentimento de ódio a romper os tênues laços de solidariedade humana em nossa sociedade. Identificar isso com fascismo é razoável, mesmo que não seja toda a estória contada
Um dos traços característicos das mais diversas formas de fascismo é a disseminação do medo e, com ele, do ódio a uma fonte fictícia de destruição de valores e modi vivendi. Essas fontes podem ser os judeus, os tutsis, os comunistas, os cristãos, o islã, os chineses e por aí vai: é sempre um outro que precisa ser eliminado e, para isso, se justifica toda e qualquer violência, da mentira, passando pelo ataque à reputação, até o uso de força letal contra o imaginário inimigo. E esse ambiente de pavor e ódio costuma emprestar legitimidade a governos violentos, autoritários e, até, totalitários, desde que compromissados com a eliminação do inimigo imaginário. A massa fica disposta a qualquer sacrifício em prol desse compromisso e quem exerce o poder sobre ela é capaz da mais vil apropriação de ativos sociais, a acabar por favorecer os oligopólios que dão sustentação econômica ao projeto de ódio.
O Brasil passou por isso. Talvez não até seu último estágio, que é a abolição da democracia e sua substituição por um regime ditatorial. O presidente eleito em 2018 bem que queria chegar a esse ponto, mas não encontrou apoio nas instituições. Ficamos, porém, no prelúdio. As práticas fascistas de agitação de massa estiveram a todo vapor: encheram as redes sociais de mentiras, destruíram reputações e, em vários episódios, levaram à violência letal ao dissenso político. Ao mesmo tempo, foi criado ambiente propício para a destruição das políticas públicas, desqualificadas como “coisa de esquerda” e, na contrapartida, liberou-se a economia para práticas de concentração de renda extremas.
Nisso, nosso fascismo tupiniquim diverge de seus exemplos históricos do nacional-socialismo alemão e do fascismo italiano. Para se estabelecerem e estabilizarem no governo, ambos tiveram que competir com a força dos movimentos comunistas, que representavam os anseios da grande massa desesperada com a crise posterior à Primeira Guerra Mundial e, depois, com a quebra da economia mundial de 1929. Para isso, foram na direção oposta do fascismo brasileiro. Forçaram políticas trabalhistas e anti-cíclicas pesadas para favorecer os mais vulneráveis. Construíram políticas sociais nas áreas de geração de empregos, catálogo de direitos laborais, estímulo a atividades recreativas para trabalhadores e por aí vai. E esse esforço serviu ao grande capital, essencialmente industrial, bem como ao médio e pequeno empresariado (o “Mittelstand”), que se valeu dessa massa de trabalhadores capazes de consumir para reaquecer a economia.
O novo fascismo perdeu essa característica. Não está preocupado com os mais frágeis. Muito menos com geração de empregos. Esse fascismo é rentista, pois, entre nós, o grande capital se tornou parasita da dívida pública. Os níveis de investimento em expansão produtiva ficaram baixos e aceleraram o processo de desindustrialização com foco, apenas, nos ganhos comerciais pela exportação de commodities, estas sujeitas aos solavancos da especulação global. Para dar base ideológica a essa desconstrução dos ativos produtivos nacionais, justificou-se o processo pela “baixa confiança dos investidores”, o que, por sua vez dava um argumento para mais medidas restritivas de investimento público, visto como gasto a agredir a saúde das contas públicas. Em nome dessa saúde se estabeleceu um teto de gastos que inviabilizou qualquer política pública sustentável.
Pergunta-se: mas como se explica o elevado grau de apoio social a esse fascismo suicida? A propaganda é tudo, como ensinou Joseph Goebbels. Esta, em tempos de tecnologia da comunicação, se fez pelas redes sociais, emprenhadas diuturnamente por arcos de narrativas construídas à base de teorias conspiratórias e mentiras verossímeis, instilando discursos de ódio e fomentando o conservadorismo de valores. Houve sistema, houve técnica. Só isso explica ter o candidato da extrema direita conseguido expressivo número devotos nas eleições presidenciais de2022.
É importante ter-se consciência, porém, de que a cadela do fascismo está ferida, mas longe de morta. O novo governo está apenas em seu início e o tempo dirá se vai conseguir, com entrega de resultados, se impor às mentiras e ao ódio disseminado por via das plataformas da internet. Esse é o ponto chave para neutralizar o fascismo tupiniquim. Será, contudo, necessário convencer as forças democráticas no parlamento para, além de apoiarem as políticas públicas necessárias, fazerem passar a legislação que cria instrumentos interventivos nas redes sociais, para estancarem a desinformação e o discurso de ódio. Sem estes, o fascismo sufoca e a democracia respira.
*Advogado, ex-ministro da Justiça e professor da UnB. Publicado originalmente na Revista Carta Capital
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