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COMBATE AO RACISMO

Não existe combate ao racismo no Brasil sem a participação dos entes federativos

A decisão do atual governo de Santa Catarina, que publicou o último edital de concurso público para o magistério estadual sem a fixação das cotas étnico-raciais, contraria a história da professora Antonieta de Barros, a primeira mulher negra eleita deputada estadual, em 1934, cuja bandeira política era o poder revolucionário e libertador da educação para todos. [1]


Dita decisão, além de desconsiderar a luta contra a discriminação racial, bem representada pelo legado de Antonieta de Barros, se esquece do fato de que Santa Catarina, em 2 de junho de 2020, optou pela adesão ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) [2], que tem como premissa basilar a implementação da Lei de Cotas em todo o país.


Contra a decisão do governo estadual, foi proposta ação civil pública, pela Defensoria Pública, e concedida a tutela de emergência para que se implementasse a reserva de vagas. [3] Posteriormente, a tutela foi cassada pelo Tribunal de Justiça, sob o argumento  de que a Lei n° 12.990/2014 não trata do âmbito estadual dos concursos públicos, mas apenas da órbita federal, e que não seria “a falta de previsão legal, nesta unidade da federação, fruto do descaso ou da omissão do Poder Legislativo catarinense, porque a matéria já fora objeto de deliberação parlamentar”.

Com efeito, o Projeto de Lei n° 424/23, que criava as cotas étnico-raciais em concursos públicos em Santa Catarina, foi rejeitado, por maioria, na Comissão de Constituição e Justiça [4], sob o argumento de sua inconstitucionalidade, pois, segundo o parecer aprovado, “todos são iguais perante a lei” e, em consequência, a reserva de vagas se constitui uma política pública “preconceituosa”, com o potencial de contribuir para “uma divisão social mais acentuada”.


O fundamento do voto vencedor, embora não negue a existência das graves desigualdades de oportunidades entre negros, indígenas e brancos, assenta-se apenas na premissa formalista da igualdade, o que é tão sem sentido quanto a divergência entre os reinos de Lilipute e Blefuscu sobre a maneira correta de partir os ovos.[5] [6]

Contra a decisão do Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública propôs, no Supremo Tribunal Federal, Pedido de Suspensão de Liminar-MC n° 1.762-SC, que restou indeferido, em 10 de setembro de 2024, pelo ministro Luís Barroso, sem não antes afirmar que as cotas, como política pública para a superação de desigualdades materiais, são compatíveis com a Constituição, devendo a questão da sujeição dos entes federativos à Lei n° 12.990/2014 ser oportunamente enfrentada em “processo de natureza abstrata”.


Autonomia dos entes federativos para implementar cotas étnico-raciais

deve respeitar princípios da Constituição


Os concursos públicos promovidos pelos entes federativos que não observem cotas étnico-raciais estão em desarmonia com a Constituição, porque, segundo jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidada em torno da ADPF n° 186-DF [7], da ADC n° 41-DF [8] e da ADI 7.654-DF [9], a Lei nº 12.990/2014 não apenas não está em contrariedade com a Constituição, mas tornou-se um inevitável instrumento de efetivação do objetivo que o constituinte impôs ao Estado brasileiro para a construção de uma sociedade, livre, justa e solidária.


O que significa dizer que a não previsão de reserva de vagas em concursos públicos vai de encontro aos princípios constitucionais da igualdade, que está muito distante de se constituir uma premissa formalista, da dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do tratamento igualmente digno, e da justiça social, que impõe ao Estado o dever de assegurar iguais oportunidades a todos.


O princípio da igualdade, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição, dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Evidente que a igualdade de tratamento é um dever que a Constituição impõe ao Estado, para a proteção do indivíduo contra o arbítrio e para a promoção de sua dignidade, não podendo ser invocada pelo Estado, por meio de seus agentes, contra o indivíduo que se encontra em situação de desigualdade, qualquer que ela seja.  Desse modo, não adianta ao Estado ater-se apenas à reverência a uma igualdade abstrata; para bem cumprir com sua destinação constitucional, são necessárias medidas concretas para romper com a discriminação racial existente no país, como bem salientado pelo ministro Barroso, na ADC n° 41-DF:


“A desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente.” [10]

Como se sabe, as cotas étnico-raciais se destinam à correção ou à atenuação da participação reduzida das minorias raciais no serviço público. [11] Busca-se, assim, proporcionar uma maior representatividade de pessoas negras e indígenas nos quadros de todos os Poderes e da administração pública direta e indireta de todos os entes federativos.

Não aplicar as cotas raciais implica, igualmente, a violação aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da justiça social, pois, “mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, deve-se distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade os valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes”. [12]


Assim, todos os entes devem atuar em conjunto com a União, por meio do federalismo cooperativo, com o intuito de enfrentar o racismo, a discriminação étnica e a desigualdade racial. Veja-se, a propósito, o artigo 23, I e X, da Constituição, que determina ser competência comum de todos os entes federativos: 1. zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas; e, 2. combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos. Para complementar:


“como partes de um mesmo Estado, os entes federativos dependem sempre uns dos outros e, por isso, devem cooperar, tratando-se como parceiros. A manutenção do pacto federativo pressupõe que seus componentes ajam com respeito, consideração e boa-fé recíprocos. Trata-se do dever de lealdade federativa, cogentes para as entidades políticas, tal como já observado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão e pelo STF.” [13]

O federalismo cooperativo, “longe de ser mera peça retórica, exige que os entes se apoiem mutuamente, deixando de lado eventuais divergências ideológicas ou partidárias dos respectivos governantes”. [14]

É importante esclarecer que, sem os entes federativos participando ativamente das políticas públicas afirmativas, os avanços se darão de forma muito mais lenta em toda sociedade. Ao contrário, imaginem a rapidez da implementação da política pública das cotas étnico-raciais por meio de concursos públicos como aquele que foi realizado na órbita nacional, que teve 2,144 milhões de candidatos inscritos e, destes, 420.793 com pedido de cotas raciais, sendo replicado nos 27 Estados e em todos os 5.570 municípios. [15]  


Cotas étnico-raciais e STF


A despeito do entendimento assinalado pelo ministro Luís Roberto Barroso na decisão do Pedido de Suspensão de Liminar n° 1.762, a interpretação que se deve dar à tese de julgamento definida na ementa da ADC n° 41-DF, em conjunto com os demais precedentes do Supremo Tribunal Federal, é a de que a reserva de vagas das cotas étnico-raciais estende-se a todos da Federação, não se restringindo à União.


“É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.”

Nesse caso, o ministro relator da ADC n° 41-DF excluiu o termo “administração pública federal” e incluiu o termo “administração pública direta e indireta”, pois entendeu que:


“eu concordo também com o que foi dito da tribuna: de que a regra vale para todos os órgãos e, portanto, para todos os Poderes. Nós estamos aqui discutindo a validade de uma lei federal, mas, evidentemente, se afirmamos a validade da lei federal, estaremos afirmando também que os Estados e Municípios podem, quando não, devem seguir a mesma linha. Portanto, o caso concreto é de lei federal, mas o efeito transcendente do reconhecimento da constitucionalidade me parece fora de dúvida.”

O voto do ministro Luiz Fux, na ADC n°41-DF, esclarece que a regra das cotas étnico-raciais deve ser estendida a todos os entes federativos, porque sua fundamentação está amparada no preâmbulo da Constituição de 1988.


“E, como essa política pública é calcada no preâmbulo da Constituição Federal, eu entendo que não há peculiaridade local de município nem de Estado que permita a não adoção desse critério. Então, em maior extensão, eu não só aplico essa regra a todos os Poderes, como também a todas as unidades federadas.”

Aliás, corrobora a extensão aos entes federativos da implementação das cotas étnico-raciais em concursos públicos, a lição do ministro Luís Roberto Barroso:


“É inevitável reconhecer que, mesmo sob a Constituição de 1988, a jurisprudência do STF resolve boa parte dos conflitos em favor do poder central. Uma importante justificativa para essa tendência é o domínio da política estadual, muitas vezes, por oligarquias e por corporações públicas locais, frequentemente legislando em causa própria, onerando destemidamente o Estado e a sociedade. Há, assim, em muitas situações, uma tensão entre o princípio federativo – isto é – a autonomia dos Estados – e o princípio republicano, que prioriza o interesse público e a boa administração.” [16]

Para que as políticas públicas de promoção de igualdade material sejam garantidas às pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação e às formas correlatas de intolerância, a decisão na cautelar da ADI n° 7.654-DF garantiu que o prazo de vigência da Lei nº 12.990/2014, de 10 anos, fosse prorrogado, para que as cotas permaneçam “sendo observadas até que se conclua o processo legislativo de competência do Congresso e, subsequentemente, do Poder Executivo”.

O Supremo tem feito muito pelas minorias étnicas no Brasil, mas pode fazer muito mais. Luiz Gama, escravizado que obteve sua liberdade e que estudou direito como autodidata, por meio da advocacia conseguiu a liberdade de mais de 500 escravizados.


Gama lutou bravamente pelo direito em favor da “existência digna das vítimas do holocausto no século 19” e percebeu que “todas as grandes conquistas que a história do direito tem registrado, a começar pela abolição da escravidão, tiveram que ser realizadas por meio da mais feroz luta, muitas vezes continuada por séculos”. Segundo Gama, “se fosse possível saber o dia em que se fez o primeiro escravo, esse dia deveria ser de luto para toda a humanidade”. [17]



Angela Cristina Pelicioli

é diretora do Instituto Movimento Humaniza Santa Catarina, advogada doutora em Direito pela PUC-RS, mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa (Portugal), professora e autora do livro: A sentença normativa na jurisdição constitucional: o Supremo Tribunal Federal como legislador positivo.


[1] O vanguardismo excepcional de Antonieta de Barros. Disponível em: https://www.gov.br/prf/pt-br/noticias/uniprf/2023/abril/o-vanguardismo-excepcional-de-antonieta-de-barros. Acesso em:  29/08/2024.

[2]Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Disponível em: https://www.gov.br/igualdaderacial/pt-br/assuntos/sinapir Acesso em: 27/08/2024.

[3]Concurso público com 6,5 mil vagas para educação em SC é interrompido após decisão judicial. Disponível em:  https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2024/07/25/concurso-publico-educacao-sc-interrompido.ghtml.  Acesso em: 06/09/2024.

[4] PL 424, de 2023. Autora: Deputada Prof. Vanessa da Rosa. Disponível em: https://portalelegis.alesc.sc.gov.br/proposicoes. Disponível em: 20/09/2024.

[5]E-Legis – Processo Legislativo Eletrônico – Disponível em: https://portalelegis.alesc.sc.gov.br/proposicoes/Kg7Zp/documentos. Acesso em: 20/09/2024.

[6] SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Tradução: Renato Roshel. Literatura Livre. Ebook: SESC. Disponível: https://literaturalivre.sescsp.org.br/ebook/viagens-de-gulliver/.  Acesso: 29/09/2024.

[7] ADPF n° 186-DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, decisão de 26/04/2012.

[8] ADC n° 41-DF, rel. Min. Luís Roberto Barroso, decisão de 08/06/2017.

[9] Ref.-MC-ADI n° 7.654-DF, rel.: Min. Flávio Dino. Julgamento em: 17/06/2024.

[10] ADC n° 41-DF, rel. Min. Luís Roberto Barroso, decisão de 08/06/2017.

[11] “No Brasil, o racismo sempre foi utilizado como forma de subjugar e penalizar as pessoas negras: 388 anos de escravidão não foram suficientes para a branquitude” (PELICIOLI, Angela Cristina. A abordagem policial baseada na cor da pele e o Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jun-04/angela-pelicioli-abordagem-policial-baseada-cor-pele2/) Acesso em: 27/08/2024.

[12] ADPF n° 186-DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, decisão de 26/04/2012.

[13] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraivajur, 2024, p. 444.

[14] ADI 6.362/DF, rel. Ricardo Lewandowski, julgamento em 02/09/2020.

[16] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. p. 445.

[17] LIMA, Bruno Rodrigues de. Luiz Gama contra o Império. A luta pelo direito no Brasil da escravidão. São Paulo: Editora Contracorrente, 2024, p. 237, 334 e 339.


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