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OS DONOS DO MUNDO

Enquanto ampliam sua incidência na política mundial, as principais plataformas digitais tentam barrar projetos legislativos para regulação do setor

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Por Maryellen Crisóstomo
Por Maryellen Crisóstomo

Nas big techs circulam desinformações capazes de corroer democracias, influenciar eleições e alterar narrativas inteiras. Como correntes subterrâneas, boatos e discursos de ódio fluem silenciosos, mas devem ser temidos como trovões em tempos de tempestade. Fagulhas de mentira, alimentadas por algoritmos invisíveis, se alastram e queimam a confiança pública. E, como o fogo, não escolhem o que devorar, tudo é combustível. 


Em um rápido olhar para o cenário global, é impossível compreender a política e a economia sem analisar o papel das grandes empresas de tecnologia, as chamadas big techs. Mais do que atores econômicos, essas corporações transnacionais passaram a disputar espaço com Estados-nação, influenciar normas internacionais e definir os contornos do que se entende por soberania digital. Seu poder extrapola os limites de mercado, moldando dinâmicas políticas, sociais e epistemológicas, sobretudo no Sul Global. O que revela a assimetria estrutural das relações tecnológicas globais e o impacto direto da financeirização digital sobre democracias periféricas. 


Empresas como o Grupo Alphabet (controlador do Google, YouTube e outras empresas de tecnologia), Meta, Amazon, Apple e Microsoft para além de oferecerem serviços, elas controlam infraestruturas críticas, como data centers, cabos submarinos, provedores de nuvem e os algoritmos que mediam a circulação da informação. 


Segundo o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, trata-se de um novo modelo de poder corporativo baseado na vigilância e na extração massiva de dados, que atualiza lógicas coloniais sob a roupagem da inovação. “As corporações de tecnologia exploram a experiência humana como matéria-prima gratuita. Tratam os dados comportamentais como sua propriedade, numa dinâmica de usurpação”, aponta o sociólogo. 


Esse “colonialismo de dados”, impõe aos países do Sul Global uma condição de dependência na qual consumimos tecnologias que não controlamos, fornecemos dados que são monetizados em outros lugares e temos pouca ou nenhuma incidência sobre as decisões regulatórias que moldam a vida digital. 


No cenário contemporâneo de comunicação digital, marcado pela supremacia de plataformas privadas com atuação transnacional, torna-se imperativo reconhecer a complexidade dos enfrentamentos políticos e jurídicos que se impõem. “Como estamos tratando de empresas de caráter transnacional, que se constituem como grandes corporações privadas, a construção de redes de atuação e incidência tanto junto ao Estado (pela aprovação de normas e legislações) quanto junto à sociedade, em prol de um engajamento qualificado é fundamental, em especial, quando falamos de países da periferia global”, avalia Ana Mielke, coordenadora executiva do Intervozes. É praticamente inviável enfrentar esse poderio com ações isoladas, limitadas às fronteiras nacionais. Ana destaca, ainda, que a União Europeia, neste contexto, tem sinalizado um caminho possível, mobilizando esforços conjuntos e obtendo avanços relevantes na consolidação de marcos regulatórios em escala regional. 

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GEOPOLÍTICA DAS BIG TECHS

O Brasil, nesse cenário, ocupa uma posição ambígua: é um dos maiores mercados digitais do mundo, mas carece de autonomia tecnológica. Nossa dependência de plataformas estrangeiras compromete a soberania informacional e fragiliza a democracia. O Marco Civil da Internet (2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (2018) representaram marcos importantes, mas enfrentam a resistência concreta das corporações e a ausência de um ecossistema digital soberano. 


Contudo, na ausência de uma regulação robusta, o que se vê é a proliferação de modelos de negócio que dependem da captura da atenção e da desinformação como motor de engajamento. As eleições de 2018 e 2022 escancararam esse modus operandi a partir de plataformas como WhatsApp, Facebook e YouTube que se tornaram vetores privilegiados de desinformação, disseminando discursos de ódio com impactos concretos no exercício da democracia no país.

 

Vimos esse diagnóstico se aprofundar na eleição de Donald Trump em 2024. A CNN Brasil revelou que Elon Musk investiu mais de US$250 milhões para impulsionar a campanha, num movimento que consolida o papel das big techs como agentes políticos globais. Essa ação não é isolada, tampouco neutra. É parte de uma arquitetura de poder em que a tecnologia molda o destino das nações. 


O protagonismo das big techs nesse contexto revela uma grave dissonância: plataformas centrais como Twitter (X), Facebook e YouTube funcionam como centros de comando de uma guerra de narrativas. A convergência entre as ambições de Trump e o aparato tecnológico das redes configura um risco à soberania digital, com tentáculos que se estendem aos regimes democráticos. Essa teia artificial, feita de likes e bots, é o veículo que transporta a perigosa ideologia do renascimento fascista, uma sombra que recai sobre a capacidade de decidir e agir feita pelas pessoas. 


Pois, plataformas digitais sob comando de corporações, atuam como filtros da realidade e determinam o que será visto, lido, comentado e silenciado. O sociólogo Sérgio Amadeu aponta que as plataformas se “convertem em estruturas geopolíticas da extrema direita”. Essa convergência entre as ambições autoritárias da extrema-direita e os mecanismos algorítmicos de engajamento privilegiam o conteúdo polarizador e desinformativo. Uma moldura que engloba a técnica do caos e a retórica do medo. 


Essa lógica também rege a cobertura de conflitos internacionais. No caso da Palestina, a censura algorítmica aplicada a conteúdos que denunciam o apartheid israelense é frequente e silencia o que realmente acontece com a população palestina, é o que denuncia o artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil de coautoria de Iara Moura, Olívia Bandeira e Pedro Vilaça, integrantes do Intevozes. A guerra não se trava apenas com mísseis, mas com silêncios programados. 


Sem regulamentação, as plataformas reprimem a visibilidade de narrativas contra-hegemônicas, apagando da timeline global as vozes palestinas. “Os veículos brasileiros também produzem uma cobertura enviesada ao invisibilizar o debate sobre o “apartheid” existente em Gaza, ao ignorar o contexto histórico do conflito e ao encobrir os crimes cometidos por Israel”, aponta Alex Pegna Hercog no artigo Além da Faixa de Gaza: comunicação como arma no enfrentamento aos genocídios

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DISCURSO DE ÓDIO E CONVIVÊNCIA NEGLIGENTE

Na Amazônia brasileira, o fenômeno assume contornos ainda mais graves, é o que aponta o relatório Amazônia Livre de Fake (Intervozes, 2024). Por meio de um ecossistema de desinformação multimodal, que cruza plataformas e anúncios pagos, políticos alinhados ao agronegócio e ao discurso antiambiental instrumentalizam as redes digitais para minar os direitos humanos, descredibilizar a ciência e os defensores da Amazônia, e promover interesses econômicos predatórios.

 

Nesse contexto, a confluência entre discurso de ódio, narrativa negacionista e investimento público em desinformação coloca em risco a justiça socioambiental e a democracia na região. O relatório evidenciou que políticos pesquisados investiram cerca de R$ 13 mil de recursos públicos em 68 anúncios bolsonaristas com conteúdo falso, alcançando mais de 4,5 milhões de interações, uma prova da eficácia do modelo de negócio das plataformas quando o foco é amplificar essas narrativas. Enquanto isso, a tecnologia que poderia proteger a floresta e seus povos, torna-se arma contra eles ao digitalizar a floresta para ser saqueada. 


Essa apropriação criminosa do ambiente digital é viabilizada por um modelo de negócio permissivo tanto de cunho político quanto empresarial.  Diante disso, temos presenciado, no Brasil, a resistência das plataformas em se adaptarem às diretrizes do Projeto de Lei nº 2630/2020 (“PL das Fake News”), que busca responsabilizá-las por conteúdos impulsionados, exigir transparência algorítmica e combater disparos em massa.  


“Apesar de avanços no texto do PL 2630 a regulação de plataformas ainda é vista com ressalvas pelo Intervozes e outros movimentos sociais, pois: setores do Congresso e das plataformas pressionam por flexibilizações que podem enfraquecer a regulação; há risco de captura corporativa, com medidas que privilegiem interesses de grandes empresas de tecnologia”, avalia Ramênia Vieira, coordenadora executiva do Intervozes. 


Em entrevista ao programa Argumento da TV Senado, em 12 de junho de 2025, o senador Alessandro Vieira (MDB), autor do PL das Fakes News, enfatiza a necessidade de responsabilização das plataformas digitais pela desinformação e crimes online, especialmente aqueles que afetam crianças e adolescentes. Ele argumenta que, diante da inação do Congresso Nacional, o STF tem assumido o papel de legislar por interpretação, o que considera o pior caminho. O senador também critica o lobby das grandes empresas de tecnologia e a polarização política que dificultam a aprovação de leis eficazes, reafirmando que o controle deve ser sobre as ferramentas utilizadas para crimes, e não sobre o conteúdo ou a liberdade de expressão.  


Nesse contexto, Vieira também chama a atenção para desafios relacionados ao “lobby das big techs, que é forte no Congresso; ao fato de o judiciário ainda ter interpretações divergentes sobre a responsabilidade de plataforma, como visto em decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), especialmente por existir um vácuo com a falta de avanço numa proposta de regulação por parte do Congresso”, aponta. 


O PL encontra-se parado na Câmara dos Deputados há um ano e não tem previsão de movimentação. No primeiro momento havia um Grupo de Trabalho (GT) que foi destituído pelo presidente Arthur Lira, que na ocasião instituiu uma Comissão Especial para tratar a pauta e que já manifestou que não vai considerar o relatório do GT, a avaliação será do zero. Entretanto, a Comissão nunca se reuniu até o momento. “Nós, como Intervozes, entendemos que deva ser retomado, sim, o relatório do GT que foi amplamente debatido com a sociedade civil, as plataformas e com a academia. A Comissão Especial deveria seguir a partir desse relatório e não zerar o jogo”, defende Vieira. 


Mielk destaca que as plataformas digitais “são responsáveis pela curadoria e distribuição de conteúdos, processo que é realizado por mecanismos completamente opacos. Ao exercer o poder de definir o conteúdo a ser distribuído e o que será invisibilizado, elas detêm poder para interferir no debate público e, portanto, devem assumir de forma subsidiária e, em alguns casos, até mesmo solidária, a responsabilidade por conteúdos nocivos e amplamente divulgados”, a exemplo disso é a difusão de conteúdos que incidem sobre a opinião pública de forma a proporcionar confusão entre a regulamentação das plataformas e a violação da liberdade de expressão. 


O Intervozes avalia que há avanços, a partir do PL em discussão, mas ainda não atende plenamente às demandas dos movimentos sociais. Segundo Vieira, os pontos críticos incluem: falta de mecanismos efetivos para fiscalização independente das plataformas; riscos de excessos na moderação de conteúdo, que podem atingir vozes marginalizadas; fragilidade em relação à transparência de algoritmos e publicidade política. Nesse sentido, o Intervozes pressiona por mais participação popular na construção de leis e garantias contra a criminalização de movimentos sociais.   


Diante disso, é indispensável e urgente debater a governança das plataformas, os critérios de moderação, os algoritmos de recomendação e a responsabilidade socioeconômica dessas empresas. A omissão das plataformas não é inércia, é estratégia. Pois, revela um modelo de negócios fundado na impunidade algorítmica e na opacidade informacional. 

O Intervozes tem sido uma das vozes mais ativas no debate sobre a regulação das plataformas digitais no Brasil, especialmente em relação ao PL das Fake News (PL 2630/2020). A preocupação consiste na ausência de perspectiva de retomada do debate, o que constitui, segundo Vieira, um “vazio legislativo” no que tange a regulação das plataformas no Brasil. 

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NEOCOLONIALISMO  

A crescente escalada da economia das big techs está profundamente enraizada na financeirização. Essas plataformas operam como intermediárias entre dados e capital, gerando valor por meio da publicidade, mas também de instrumentos financeiros, controle de cadeias logísticas e monetização de hábitos. A Amazon, por exemplo, não é apenas um e-commerce: é um império logístico e financeiro. Enquanto a Alphabet, controladora do Google, investe em inteligência artificial, cidades inteligentes, mobilidade urbana e sistemas de saúde. Estamos diante de conglomerados cuja acumulação de capital se confunde com o funcionamento cotidiano da sociedade. 


Visto a partir do Sul Global, isso representa uma nova forma de colonialismo: um extrativismo de dados que atua concomitante com o novo conceito de extrativismo mineral e florestal, ora difundidos para fins da agenda climática, porém, com menos resistência política e mais lucro. Isso evidencia o quanto a neutralidade tecnológica é um mito, visto que a tecnologia carrega interesses, valores e hierarquias. E, no Sul Global, a regra tem sido a desinformação como estratégia de governabilidade digital. 


Em resposta a esse colapso informacional, surgem iniciativas regulatórias como o PL das Fakes News no Brasil, que apesar de enfrentar resistência corporativa, é uma tentativa de responsabilizar as plataformas. Internacionalmente, destaca-se o Digital Services Act (DSA), da União Europeia, que estabelece obrigações de transparência, auditoria de algoritmos e moderação de conteúdo. Mas legislar não basta e no caso do Brasil, há controvérsias entre os legisladores, com boa parte cedendo ao lobby das plataformas, em detrimento do interesse público.  


Contudo, Rodolfo Vianna – integrante do Intervozes, em seu artigo Avanço das big techs e crise no modelo de negócio do jornalismo, lembra que a concentração do controle da informação persiste: no Brasil, assim como antes com os conglomerados de TV e imprensa, hoje são poucas as big techs que dominam as principais plataformas digitais, tanto em nível nacional quanto global. A ausência de critérios públicos para impulsionamento de conteúdos cria um sistema de desinformação que beneficia interesses econômicos e políticos específicos, em detrimento da pluralidade e da diversidade. 


O Intervozes, portanto, defende uma regulação democrática das plataformas que priorize: a) transparência algorítmica, para evitar manipulação de conteúdo; b) combate à desinformação sem censura prévia; c) responsabilização das plataformas por danos causados por conteúdo impulsionado; d) proteção de dados e privacidade dos usuários; e) garantia de liberdade de expressão, mas com mecanismos de accountability.   


A disputa não é apenas técnica ou jurídica, é civilizatória. Como sintetiza Sérgio Amadeu, “os dados são o novo campo de batalha das democracias. E, no Sul Global, estamos sendo desarmados antes mesmo de começar a lutar.” Se as plataformas se tornaram o novo campo de batalha, então que sejamos guerreiros da escuta, da denúncia e da reconstrução. Que o poder das big techs não seja maior do que o poder da palavra, do território, da ancestralidade. E que nossos dados, como sementes, germinem liberdade e não vigilância. Ou regulamos o poder das plataformas, ou assistiremos, passivamente, à derrocada da democracia por meio de um toque, um clique, um compartilhamento. Neste tempo em que a verdade se transforma em produto e o silêncio em algoritmo, que a nossa resposta seja coletiva, justa e radicalmente humana. 


Contudo, frente a essa conjuntura, faz-se necessário um pacto ético digital, com quatro eixos estratégicos: 1) governança participativa, com conselhos multissetoriais de regulação digital; 2) Transparência radical, com divulgação pública dos critérios algorítmicos; 3) sanções robustas, com penalidades proporcionais ao porte e impacto da empresa; 4) investimento em infraestrutura pública digital, fomentando tecnologia nacional e jornalismo comunitário. 

 

Esse é o segundo artigo da série “Relatório Direito à Comunicação 2024”, publicação anual do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. O relatório apresenta análises e reflexões sobre questões ligadas ao direito à comunicação, com um olhar sobre 2024 até o primeiro semestre de 2025. 

 

Maryellen Crisóstomo é quilombola do território Baião, no Sudeste do Tocantins. Jornalista associada ao Intervozes e graduanda em Direito. 


Todas as imagens desta publicação foram criadas com IA Generativa DeepSeek


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