Por Angela Cristina Pelicioli
O #HUMANIZASC publica matéria da professora, doutora em Direito pela PUC-RS e autora de A Sentença Normativa na Jurisdição Constitucional: o STF como Legislador Positivo, Angela Cristina Pelicioli, apoiadora e colaboradora do MOVIMENTO HUMANIZA SANTA CATARINA.
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O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, nos conduz ao racismo cotidiano enfrentado por uma família negra em Porto Alegre. Pedro narra a trajetória de seu pai, Henrique, professor negro que dá aulas à noite para adolescentes “que não deram certo no turno do dia”. Após anos lecionando, Henrique encontra um caminho para que seus alunos prestem atenção e participem do processo educativo, e isso se dá por meio da leitura da obra Crime e Castigo. Desde então, ele se realiza como professor e sonha acordado com essa conquista. Até que mais uma abordagem policial cruza seu caminho e acaba com sua vida.
“[…] Sua cabeça ainda estava na sala de aula, ainda estava em Dostoiévski. Ele (o policial) gritou para você (Henrique) parar. Gritou para você ir para a parede. Mas você não escutou ou não quis escutar. Ele e os outros policiais estavam nervosos, era só para ser mais uma abordagem de rotina. […] O primeiro tiro pegou no seu ombro, e foi como se você tivesse levado uma pedrada forte. O segundo foi no peito, dilacerante, uma dor difícil, não tão forte como as outras dores que tocaram seu corpo, mas ainda uma dor difícil. O terceiro foi dado por ele, pelo policial que vinha tendo pesadelos com homens negros invadindo a sua casa. Um tiro certeiro na cabeça. Os outros vieram simultaneamente” [1].
As abordagens policiais são de uma aterradora constância na vida das pessoas negras. Pesquisa do Rio de Janeiro denominada Elemento Suspeito [2], promovida pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, ligado à Universidade Cândido Mendes, informa que as pessoas negras entrevistadas já teriam sido abordadas por policiais mais de dez vezes, unicamente em razão de sua cor de pele. Humilhação e constrangimento são as palavras mais usadas pelas pessoas negras, que identificam o sentimento do abuso vivenciado com as inúmeras abordagens policiais com: a dor moral do rebaixamento e do sofrimento inominável; a dor física pelas agressões sofridas e, em muitos casos, a morte causada por aqueles que têm a função de proteger e a obrigação de não discriminar (agentes públicos da União, dos estados federados e dos municípios, em todas as esferas de atuação).
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, atuando como relator no julgamento suspenso do HC 208.240 – SP [3], evidenciou a obrigação de se decidir o óbvio: as corporações de segurança pública e seus policiais em nosso país não podem mais utilizar meios subjetivos para a abordagem baseados “na raça, cor, gênero, descendência, nacionalidade ou etnicidade” [4]. Isso porque, continuar a admitir o procedimento que deu origem à abordagem policial, no caso do HC 208.240 – SP, é justificar o injustificável, como o fez o policial em seu depoimento ao afirmar que: “avistou ao longe indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas” [5]. Fachin reconheceu a ilicitude das provas obtidas por policiais que realizaram a abordagem discriminatória e, em complementação ao seu voto, rebateu os votos dos ministros André Mendonça, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Nunes Marques, sobre não ser considerado o caso concreto exemplar para julgamento. In verbis:
“Este não é ‘um caso ruim’. […] Negro em local suspeito. Talvez fosse o caso de acrescentar: só poderia ser crime. Se a referência à cor da pele fosse supérflua, ela não estaria ali. Se a referência à cor da pele fosse supérflua, ela não seria o primeiro elemento indicado pelo policial para justificar a abordagem” [6]
No Brasil, o racismo sempre foi utilizado como forma de subjugar e penalizar as pessoas negras: 388 anos de escravidão não foram suficientes para a branquitude [7]. Após a abolição, Raimundo Nina Rodrigues, professor de Medicina Legal, eugenista, aplicador das teorias de Lombroso no Brasil por meio de suas obras e estudos, introduziu no projeto do Código Penal de 1890 a concepção de uma “raça inferior e selvagem” em que figuravam como criminosos naturais “todos aqueles que não estivessem dentro dos padrões biológicos da civilização branca, tida como superior” [8]. Esse “saber” racista de Nina Rodrigues, a meu ver, continua em vigor até hoje em muitas rotinas do âmbito penal brasileiro, assegurando a visão de que as pessoas negras são inferiores e perigosas.
Neste contexto, vê-se que a democracia brasileira sofre de uma doença crônica, qual seja, o racismo estrutural [9] — nas instituições públicas e na sociedade —, que se reflete em “um sistema de opressão e de relação de poder” [10]. A abordagem policial baseada na cor de pele é um exemplo do racismo estrutural em que se utiliza reiteradamente o poder de Estado, por meio da força policial e do próprio Poder Judiciário, para se reproduzir o desrespeito, a desigualdade e infligir dor à população negra, como demonstra o estudo “Segurança da população negra brasileira: como o sistema de justiça responde a episódios individuais e institucionais de violência racial”, do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) [11]. Esse estudo analisou 1.837 acórdãos de segunda instância, em sete estados da federação (BA, GO, PA, PR, SE, RS e SP), em que se discutia o conceito vago de “fundada suspeita”, na realização de busca pessoal em abordagens policiais feitas em residências, no contexto de prisões em flagrante por tráfico de drogas. Em 97% dos acórdãos analisados pelo núcleo de estudo (1.467), os juízes rejeitaram as argumentações dos advogados, levando à manutenção da condenação, em apenas 2% (29) dos acórdãos analisados as nulidades foram acolhidas, absolvendo os acusados.
Outras 299 decisões não foram consideradas porque os pesquisadores não tiveram acesso completo aos processos. O resultado da pesquisa concluiu que: 1. o principal fundamento da prisão em flagrante nas abordagens de rua — fundada suspeita — não chega nem a ser discutido pelo Poder Judiciário; 2. a principal alegação da defesa em juízo é a violação do domicílio do réu, enquanto a denúncia de flagrante forjado e a violência e/ou tortura praticada pela abordagem policial é levada a juízo em raros casos, pois a defesa deixa de alegar tais fatos por haver poucas chances de lograr êxito; 3. apesar das denúncias anônimas serem os principais motivos para as abordagens residenciais, 1/3 delas começam em abordagens nas ruas. Isso atesta a inconsistência do depoimento do policial, pois, como informa, o réu “confessa voluntariamente” na rua — que possui mais droga em casa —, o que é improvável, principalmente pela violência infligida pela polícia; e, 4. os juízes e promotores em sua maioria convalidam a “narrativa policial” de que a fundada suspeita seja aplicada em pessoas negras, principalmente no crime de tráfico de drogas, “contribuindo para a manutenção do quadro de insegurança pública para a população negra do país. […] Ao legitimar a veracidade dos depoimentos policiais prestados nos autos, transformando a ‘verdade policial’ em ‘verdade judicial’, os juízes brasileiros continuam a chancelar ações discriminatórias raciais que compõem a fundada suspeita”.
Por isso, o voto do ministro Fachin, no HC 208.240-SP, deve ser o vencedor, para o fim de declarar a nulidade da revista pessoal e dos demais atos processuais, além de trancar a ação penal. Para além do caso concreto, ressaltam-se as seguintes teses, fixadas no voto do relator, com o objetivo de coibir a abordagem policial em razão da cor de pele:
“1. a busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos concretos e objetivos, como a posse de arma proibida ou de objetos ou de papéis que constituam o corpo de delito, não sendo lícita a realização de medida com base na raça, cor da pele ou aparência física; 2. a busca pessoal sem mandado judicial reclama urgência para a qual não se pode aguardar uma ordem judicial; e 3. os requisitos para a busca pessoal devem estar presentes anteriormente à realização do ato e devem ser devidamente justificados pelo executor da medida para ulterior controle pelo Poder Judiciário” [12].
Desde o caso Elwanger, o Supremo Tribunal Federal conferiu autoridade jurídica à evidência científica de que a raça humana é única e não existem diferenças entre os seres humanos: todos pertencem à mesma raça. A divisão em raças “resulta de um processo de conteúdo meramente político-social” [13]. Desta forma, é de se esperar que o Supremo Tribunal Federal respalde o voto do ministro Fachin, pois se deve combater o racismo estrutural, sobretudo aquele reproduzido pelo próprio Estado — Poder Judiciário, Poder Executivo e Poder Legislativo —, para que o alerta de Silvio Almeida não se transforme em realidade:
“Em uma sociedade em que o racismo está presente na vida cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como ‘normais’ em toda sociedade”[14].
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[1] TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p.176-177.
[2] Negros são os maiores alvos de abordagens policiais no Rio, diz pesquisa. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2022-02/negros-sao-o-maior-alvo-de-abordagens-policiais-no-rio-diz-pesquisa. Acesso em: 26/4/2023
[3] Voto do rel. min. Edson Facchin, HC 208.240-SP, julgamento de 2/3/2023.
[4]Prevenindo e combatendo o perfilamento racial de pessoas afrodescendentes- Boas práticas e desafios. ONU Brasil Direitos Humanos. Disponível em: https://acnudh.org/load/2020/12/1821669-S-DPI-RacialProfiling_PT.pdf. Acesso em: 1/4/2023.
[5] Habeas Corpus. Tráfico 1,53 gramas de cocaína. Sentença condenatória. Flagrante ilegalidade. Quantidade de droga que não justifica afastar a causa de diminuição do art. 33, § 4°, da Lei n. 11.343/2006. Ínfima quantidade que deve prevalecer sobre a reincidência, permitindo fixar regime mais brando e substituir a reprimenda. […] Auto de prisão em flagrante eivado de nulidade. Busca pessoal. Fundada suspeita originada em elemento inidôneo. Cor da pele não pode configurar elemento concreto indiciário de desconfiança do agente de segurança pública ilicitude dos elementos de prova que embasaram a condenação. Constrangimento ilegal evidenciado. […] 4. Busca pessoal do paciente feita em razão de o mesmo ser negro conforme depoimento dos responsáveis pelo flagrante: “Que ao passar pela rua Santa Teresa, quadra 4, avistou ao longe um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas.” (Habeas Corpus n° 660.930 – SP, min. rel. Sebastião Reis Júnior, julgamento em 14/9/2021)
[6] Voto do rel. min. Edson Fachin, HC 208.240-SP, julgamento de 08/03/2023.
[7] A branquitude “e sua perpetuação no tempo se deveu a um pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios” (BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 11).
[8] GÓES, Luciano. A “tradução” de Lombroso na obra de Nina Rodrigues. O racismo como base estruturante da criminologia brasileira. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p. 225.
[9] ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. 7ª. Reimpressão. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra 2021 (Feminismos Plurais. Coordenação de Djamila Ribeiro), p. 50.
[10] RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 41.
[11] Projeto “Segurança da população negra brasileira: como o sistema de justiça responde a episódios individuais e institucionais de violência racial”. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/32916. Acesso em:25/05/2023.
[12] Á guisa de informação, existem alguns Projetos de Lei tramitando no Congresso Nacional, modificando o art. 244, do Código de Processo Penal, que trata sobre a busca pessoal, que causa interferência direta na abordagem policial discriminatória. Em meu entender, dentre todos os projetos que tramitam, o PL n° 3.060/2022, da Câmara dos Deputados, se aprovado, elucidará o termo “fundada suspeita” na busca pessoal, deixando de ser um conceito subjetivo e passando a ser um conceito objetivo. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2227813&filename=PL%203060/2022. Acesso em: 5/4/2023.
[13] “Habeas Corpus. Publicação de livros: Antissemitismo. Racismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Liberdades de expressão. Limites. Ordem denegada. […] Raça humana. Subdivisão inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os seres humanos, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pelos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. Inconsistência da premissa. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo, que por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista” (Habeas Corpus 82.424 -RS, presidente e relator para o acórdão min. Maurício Correa, julgamento em 17/09/2003).
[14] ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. p. 48.
PUBLICAÇÃO ORIGINAL NO CONJUR
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Crédito da imagem 2 – Rovena Rosa
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