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Internação à Força em BC

Denúncias de remoção forçada das ruas voltaram a ocorrer, mesmo após proibição da Justiça


“Não dê esmola. Dê oportunidade. Disque 156”, diz a placa cravada na praça no centro de Balneário Camboriú (SC), a cidade com o metro quadrado mais caro do país. O número indicado é da Abordagem Social, serviço da prefeitura que estaria tirando pessoas em situação de vulnerabilidade das ruas de forma violenta para promover internações forçadas em comunidades terapêuticas fora do município, segundo denúncias.


As ações, descritas pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) como “truculentas, ilegais, imorais e desumanas”, coincidem com períodos em que a cidade está mais cheia de turistas, como no último verão e as férias escolares de julho.


O serviço vinculado à Secretaria de Inclusão Social de Balneário Camboriú foi comparado, em decisão judicial, à antiga “carrocinha”, que recolhia cachorros de rua. “Até é prestada ajuda àqueles que querem, mas os que se negam são de todo modo recolhidos – não como pessoas livres, mas mais próximo do que se faz com cães, em que são colocados na carrocinha”, escreveu o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) Hélio do Valle Pereira.


Em junho do ano passado, Pereira proibiu a condução coercitiva e o uso da Guarda Municipal em abordagens a pessoas em situação de rua. Após denúncia da promotoria sobre o descumprimento da decisão, a partir de revelações de uma série de reportagens do ND Mais, a Justiça estipulou multa de R$ 10 mil “por cada novo episódio de condução coercitiva de pessoas em situação de rua denunciado” – mas até o momento o município não foi penalizado.


A Agência Pública ouviu relatos de pessoas em situação de rua neste mês de julho, que denunciaram a volta das abordagens violentas no município.


“O cara do resgate e o da polícia falaram pra mim: ‘Se liga aí, pega as suas coisas, dá um rolê, que vai começar, foi liberada a remoção compulsória”, contou Tales* à reportagem. “Ontem a van da Abordagem Social já levou dois à força”, denunciou Jorge*. Eles relataram ter sido internados à força no final do ano passado e sofrido uma série de agressões físicas.

Procurada, a prefeitura de Balneário Camboriú disse que “refuta categoricamente as alegações generalistas de que o município tenha cometido atos ilícitos contra pessoas em situação de rua”. “Reafirmamos o nosso compromisso com a proteção e o respeito a todos os cidadãos, independentemente de sua condição socioeconômica”, acrescentou.


“Fiquei quatro meses preso numa clínica”


O catador de recicláveis Jorge*, de 37 anos, contou à Pública que ficou quatro meses “preso” numa clínica em Araquari (SC), a cerca de 80 km de Balneário Camboriú. “Bateram em mim para eu assinar um documento autorizando a internação”, recorda. Era o Natal de 2023. Ele estava procurando latinha na rua quando diz ter sido pego à força por pessoas que descreveu como policiais que estariam em uma van identificada como sendo da Abordagem Social.


“Eles dão choque, tapa na cara, esbarram a nossa cabeça na parede, chutam a gente. Agressão sem misericórdia, sem dó”, afirmou. Segundo Jorge, após ter sido autorizado a sair da clínica (que diz não recordar o nome), não recebeu opção para retornar a Balneário Camboriú. “Foram dois dias de caminhada para voltar”, lembra.


Também em dezembro do ano passado, cinco dias antes do Natal, Tales* foi alvo da Abordagem Social de Balneário Camboriú. Ele aguardava uma pessoa lhe comprar um lanche quando foi interpelado por uma viatura da Guarda Municipal. “A viatura da guarda ficou quase uma hora me segurando ali, diminuindo a minha pessoa. Aí depois chegou a van branca com as pessoas do resgate e me levaram”, relatou à reportagem. 


Tales contou que resistiu para entrar no veículo, e que, por causa disso, foi agredido e algemado. “Disseram: ‘Tu tem que ir, vamos te internar agora’. Eu disse que não queria, mas aí eles responderam: ‘Se não vai por bem, vai por mal’. 


De lá, Tales disse que foi levado com outras pessoas para a Casa de Passagem – um abrigo público. “No outro dia, botaram a gente na van acorrentado e amarrado com algema e largaram a gente na clínica Santa Mônica”. Após 90 dias internado, ele também teve que voltar caminhando para Balneário. 


Tales não se recorda exatamente o nome do município para onde foi levado. A reportagem localizou uma clínica com o nome “Santa Monica Residencia Inclusiva”, em Araquari. A comunidade terapêutica firmou, em 28 de dezembro, um contrato com a prefeitura de Balneário Camboriú, no valor de R$ 262,5 mil, para disponibilizar 25 vagas, no período de 90 dias, “para atender a demanda de internação involuntária”.


A enfermeira da clínica Santa Mônica Ana Luíza Cassiano disse que a instituição nunca internou nenhuma pessoa encaminhada pelo município de Balneário Camboriú sem consentimento do paciente. “Nós não tivemos nenhum paciente que se recusou a assinar o termo [de internação] voluntário”, observou. 


De acordo com a Lei n. 10.216/2001, a internação involuntária só pode ser feita mediante relatório médico e comunicação ao Ministério Público em 72 horas; e a internação compulsória necessita de autorização judicial.


A prefeitura de Balneário Camboriú informou à reportagem que faz “internações tão somente em casos de drogadição com laudo médico”. “Todas as ações de abordagem social visam oferecer suporte e assistência voluntária, respeitando sempre a liberdade e a vontade individual de cada pessoa”, defendeu. A reportagem solicitou o número de pedidos de internação compulsória e involuntária encaminhados à Justiça e ao MPSC, desde dezembro de 2023, mas não obteve retorno. 


Segundo a prefeitura, desde o final de 2023 a Secretaria de Saúde conta com o programa Consultório Social, que visa identificar dependentes químicos em situação de rua, através de uma equipe médica, a fim de garantir o apoio adequado e humanizado, “focando sempre na reabilitação e reintegração social em clínicas terapêuticas conveniadas ao município”.


O governo municipal destacou ainda que “até o momento, não há provas substanciais que corroborem as acusações de uso de violência de maneira sistemática ou generalizada” pelos agentes de segurança contra pessoas em situação de rua. De acordo com a prefeitura, “denúncias de mau comportamento são levadas à Corregedoria da Guarda Municipal e investigadas com rigor”. “Tais acusações são não apenas infundadas, mas também prejudiciais ao trabalho sério que é realizado”, acrescentou.


MPSC reuniu mais de dez denúncias de internação forçada


Quinze depoimentos semelhantes aos de Jorge e Tales foram anexados a uma ação civil pública do MPSC contra a prefeitura de Balneário Camboriú. Os relatos são de pessoas que alegam ter sido levadas à força pela Abordagem Social e a Guarda Municipal para a comunidade terapêutica Instituto Redenção, localizada na zona rural de Biguaçu (SC), a 71 km do centro de Balneário. 


Desde o ano passado, o MPSC tenta frear a “política higienista” do município sob a gestão do prefeito bolsonarista Fabrício Oliveira (PL). Além das denúncias ao TJSC, a promotoria enviou um ofício ao Supremo Tribunal Federal (STF), em abril, informando que o município estaria promovendo uma “higienização social” e agindo na contramão da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 976/DF, que proíbe a remoção forçada de pessoas em situação de rua. 


“As pessoas em situação de rua que estão em Balneário Camboriú têm sido alvo frequente de política higienista e atos de tortura”, destacaram os promotores Alvaro Pereira Oliveira Melo e Jean Michel Forest.


Intimado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes a se manifestar, o procurador-geral Paulo Gonet sugeriu a indicação do caso ao Centro de Coordenação e Apoio às Demandas Estruturais e Litígios Complexos (Cadec/STF), “para que seja estabelecido diálogo institucional e oportunizadas medidas conciliatórias e interventivas inerentes aos litígios complexos”. Além disso, o procurador sugeriu que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fosse comunicado “para monitorar o andamento e a solução das ações judiciais envolvendo a temática”. 


A ação de “varredura” denunciada pelo MPSC teria ocorrido no último verão e atingido não só pessoas em situação de rua, mas trabalhadores que dormiam em locais públicos – em alguns casos, após terem ingerido bebida alcoólica, conforme os depoimentos. “As diversas pessoas atendidas desde o dia 09/01/2024 relataram à equipe socioassistencial [de Biguaçu] terem sofrido diferentes violações de direitos e violências (agressões físicas, verbais, submissão a trabalho forçado, cárcere privado, retenção de pertences e documentos pessoais, restrição do direito de ir e vir, etc)”, diz a denúncia.  


Caminho dificultado para voltar à cidade


Em janeiro, o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) de Biguaçu começou a receber um número grande de pessoas solicitando passagens de volta para Balneário Camboriú. Além da alta demanda, os relatos de violência chamaram atenção da equipe, conforme contou à Pública a gerente de proteção social especial da secretaria de Assistência Social de Biguaçu, Ana Clara Siqueira.


“Além dessa questão de impossibilidade de retorno [para Balneário], o Centro POP estava recebendo diversos relatos de atitudes truculentas. Precisou-se, então, fazer algo a respeito disso e aí foi feita uma denúncia para o Ministério Público”, destacou Siqueira. Ela disse que desde março não há mais registros de pessoas que teriam sido levadas à força até o município. 


Bernardo*, 37, teria sido um dos abordados após “beber demais”, em 19 de janeiro. Ele exibia hematomas, e disse ter sido “agredido, sequestrado, dopado” e “encaminhado para uma comunidade terapêutica”, onde teria sido mantido sob medicações. Além disso, sua carteira com documentos pessoais teriam sido queimados, conforme denunciou. 


Rodrigo*, 21, também contou ter sido dopado após receber uma injeção que o fez desmaiar. Ele teria acordado na comunidade terapêutica, de onde fugiu, tempos depois, deixando todos os seus pertences para trás. Ambos os relatos, envolvendo o Instituto Redenção, estão entre os 15 anexados na ação civil pública do MPSC.


O Instituto Redenção tem um contrato com a prefeitura de Balneário Camboriú no valor de R$ 576,7 mil, “para prestação de serviços de acolhimento institucional para pessoas (adultos) de ambos os sexos em situação de vulnerabilidade social e econômica (situação de rua) na modalidade Casa de Passagem”. O contrato, firmado em 8 de dezembro do ano passado, com prazo de 12 meses, não menciona a internação de pessoas com dependência química.


Além de Biguaçu, a organização possui unidades em Balneário Camboriú e Itajaí. “O nosso contrato é de Casa de Passagem, nós fazemos atendimento de Casa de Passagem. Se a pessoa quiser fazer o tratamento da dependência química, ela fica”, afirmou o presidente da ONG, Alceu Daud de Mello. Segundo ele, caso a pessoa queira aderir ao tratamento, a organização procura encaixá-la em outro programa para o financiamento “federal, estadual ou municipal”. 


“Eu vou te dizer que quase 100% desse pessoal que está morando na rua são usuários ou de álcool ou de tóxicos. Uma vez que eles chegam até a nossa instituição, eles são atendidos pelo psicólogo e pela assistente social”, destacou. Mello negou que as pessoas sejam internadas à força em sua instituição. “Lá, não fica forçado. Não tem como ficar forçado. Nós não temos muro”, justificou.  


Municípios priorizam internação em comunidades terapêuticas


Uma equipe do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) esteve em Balneário Camboriú, em abril, para averiguar as denúncias de violações de direitos contra a população em situação de rua. Eles também visitaram Florianópolis, Palhoça e Criciúma.


Além de serviços de acolhimento precário, uso da Guarda Municipal contra as pessoas em situação de rua e “muita fome”, o conselheiro Darcy Costa, que acompanhou a missão, disse à reportagem que “a política principal” dos municípios “é a internação nas comunidades terapêuticas”. 


“E as comunidades terapêuticas, a maioria, são de propriedade particular e, em especial, são comunidades evangélicas”, destacou Costa, que é também coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). 


Um relatório com o diagnóstico da situação com recomendações às administrações dos municípios e do estado deve ser apresentado neste mês de agosto.


Edição: Ed Wanderley


FONTE - APública

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