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A luta de professoras sob ataques políticos em Santa Catarina

Atualizado: 21 de out.

A violência política de gênero contra professoras em Santa Catarina.

Por Maria Elisa Maximo


Há 2 anos, o mês de outubro me acende memórias de dor e de luta porque ousei criticar publicamente a estética da extrema direita bolsonarista na maior cidade do estado de Santa Catarina. O linchamento virtual, o cancelamento, a perseguição política e uma série de violências institucionais culminaram com uma demissão sem justa causa da instituição de ensino superior privada e comunitária onde atuei por quase 16 anos, como docente, pesquisadora e gestora.

Esse texto rememora minha vivência com a violência política de gênero que, em Santa Catarina, é um fenômeno que alcança mulheres na política, na educação, nas artes. 

Era véspera de primeiro turno e Joinville se preparava para receber a carreata ou motociata que encerraria a campanha. Para quem, como eu, vivenciou os anos que se passaram desde o golpe de 2016 no limite da resiliência, da saúde mental, da capacidade de organizar a raiva e de resistir, aquela véspera de eleição era particularmente dramática, quase catártica. Afinal, estávamos na iminência de vencer, ainda que com muitas dificuldades e desafios, aqueles anos de escalada autoritária, militarista, armamentista e cheia de nuances nazifascistas que resultaram em retrocessos históricos para a democracia brasileira. 


E apesar do clima repressivo que pairou durante toda a campanha eleitoral, naquele sábado quente e ensolarado de 1º de outubro foi impossível calar. Eu acompanhava a cidade se pintar de verde e amarelo, com o rosto do inominável estampando toalhas e bandeiras vendidas em todas as esquinas. As pessoas se aglomeravam nos meios-fios das principais avenidas, com seus figurinos marcados pela perigosa junção entre nacionalismo e lealdade cristã. Eu sofria o peso daqueles anos de um governo mundialmente marcado pelo negacionismo científico, pelo descaso com a pandemia e pelas sistemáticas violências contra todas e todos que não aderiram à sua mitomania.


Cheguei em casa e, muito tocada pela materialidade da tragédia política e estética do bolsonarismo local, escrevi em meu perfil pessoal do antigo Twitter: “Joinville segue sendo o esgoto do bolsonarismo, para onde escoou os resíduos finais da campanha do imbroxável inominável. Não tem quem escape: há gente feia, brega e fascista para todos os lados”


Pouco importa o julgamento moral sobre o tuíte, se eu deveria ou não publicá-lo, se eu poderia escrevê-lo de outra forma, se as palavras usadas eram adequadas. O que importa é que era meu direito fazê-lo. Liberdade de expressão, de pensamento, de manifestação política em um espaço público no qual, todas e todos, podiam e estavam se expressando naquele “fla-flu” eleitoral. Por isso mesmo jamais imaginei que, ao exercer um direito, viveria o pior momento da minha vida. O tuíte viralizou não por mérito meu, mas pela ação dos algoritmos que, estimulando e produzindo a polarização política, entregaram-no principalmente aos haters


“Doutrinadora”, “professora esquerdista”, eles diziam: “a demissão vem”. Retuítes, replies e prints circulavam marcando diferentes perfis da instituição, amplificando a pressão por uma “punição exemplar”. No ápice da viralização, prints do tuíte chegaram aos grupos de whatsapp, entre eles grupos de amigos dos meus pais, grupos profissionais de parentes próximos e grupos de mães das turmas escolares dos meus sobrinhos e dos meus filhos, alcançando a minha família extensa de forma acachapante. A onda de ódio chegava também por mensagens privadas, tornando minhas redes sociais intransitáveis. 


Vereadores, deputados e demais atores políticos – quase todos homens – entraram em cena. Eles usaram espaços nas tribunas legislativas e suas amplas audiências na internet para insuflar a perseguição política. Essa ação configurava uma orquestração por agentes públicos, em posição de poder que, beneficiados pela infraestrutura das plataformas digitais, produziam mais uma “inimiga” a ser eliminada. 


E a instituição, alinhada ideológica e economicamente à extrema direita local, respondeu a todas as pressões, forçando um afastamento e, quinze dias depois, anunciando a demissão. Entre o afastamento e a demissão, meu destino ficou nas mãos de homens brancos que, assentados sobre o machismo estrutural e institucional, tentavam evitar grandes repercussões midiáticas. Eles mantinham vigilância constante sobre minhas ações e controlavam as manifestações públicas de apoio e solidariedade, principalmente das/os estudantes.


Não teve jeito. A demissão veio e, com ela, o protesto de alunas/os e ex-alunas/os no campus da instituição, localizado em uma rua central da cidade. A máquina de fake news da extrema direita operou rapidamente para tentar enquadrar uma manifestação pacífica e justa como vandalismo e baderna. A cobertura midiática foi inevitável, alcançando dimensões nacionais. Está claro que não foi um caso isolado. 


Estávamos vivendo a eleição que mais registrou casos de assédio eleitoral, em um estado que, há dez anos, já se constituía como laboratório de perseguição política e ideológica a professoras e professores. Esses educadores que insistem em preservar o cerne de toda a atividade docente: provocar o pensamento crítico e promover a emancipação social, colaborando na construção de sujeitos históricos, conscientes de suas realidades e capazes de realizar transformações.

As violências, a perseguição e o assédio judicial sofridos pela professora Marlene de Fáveri, entre 2013 e 2014, inauguraram um modelo de ação autoritária.

Esse modelo levou à assembleia legislativa uma jovem deputada, pupila de Olavo de Carvalho. A plataforma política dessa deputada é exclusivamente pautada por ataques à educação, às escolas, às professoras e aos professores. Desde então, Santa Catarina passou a contar com uma verdadeira milícia anti-educação. Essa milícia se vale da própria estrutura do Estado para atuar.


São figuras políticas e influenciadores digitais cujo foco de ação é descredibilizar a estrutura de ensino – desde a educação básica até a universitária. Ao passo que vendem seus cursos, seus livros, e beneficiam empresas e plataformas que lucram com a crise de legitimidade das políticas educacionais. 


Estimulam estudantes a gravarem aulas sem autorização prévia, mantêm gabinetes de “denúncias” contra docentes e apresentam proposições legislativas para censurar ou limitar a atividade docente e a gestão escolar em diversas áreas. Ao provocarem pânico moral em suas audiências numerosas e espalhadas pela internet, mantêm uma crise permanente no campo educacional.


Assim temos as Marlenes, as Márcias, as Maria Elisas, as Julianas, as Ibrielas, Medianeiras e Carolinas. Professoras assediadas, processadas, afastadas ou demitidas no pleno exercício correto e ético da atividade docente.

As histórias diferem, os desfechos são vários, mas são todas mulheres que tiveram direitos violados. São mulheres que sofreram tentativas de silenciamento e eliminação. São mulheres que tiveram suas posições e competências profissionais colocadas em xeque. São mulheres perseguidas por uma estrutura de poder machista e misógina. 

E quando não são as professoras – mulheres – as vítimas dos ataques e perseguições, são então os esforços de se levar para as salas de aula temas relacionados à diversidade sexual e de gênero, aos direitos humanos e às desigualdades sociais, rapidamente enquadrados em rótulos de “ideologia de gênero” ou “doutrinação ideológica” pelas tubas da escola sem partido.


Estamos tratando de um fenômeno que, em Santa Catarina, encontra solo fértil, nutrido pela hegemonia de uma extrema direita “bbb” (boi, bala e bíblia) que celebra clubes de tiro enquanto despreza escolas. Na esteira de uma crescente mercantilização da educação, a precarização e deslegitimação da atividade docente avançam. Isso serve a interesses políticos e econômicos de setores empresariais e fundações educacionais. 


Esses grupos veem na fragilização da educação pública, democrática e socioreferenciada uma oportunidade de lucro. Aproveitam-se para vender “novos” modelos gerenciais, considerados mais “modernos”, “eficientes” e “responsáveis”. No entanto, tudo isso ocorre em detrimento da formação docente, da qualidade do ensino e de uma educação pautada pela ciência e por princípios de cidadania.

Assim, na semana em que se celebra o Dia das Professoras, pensar sobre os desafios da docência em nosso estado, em especial para nós mulheres, implica tratar das violações à liberdade de cátedra e à liberdade individual de associação e manifestação política das trabalhadoras e trabalhadores da educação.

Isso deve ser visto em sua dimensão coletiva e como uma responsabilidade de toda a sociedade. O amplo enfrentamento dessas violências, com uma perspectiva de gênero, deve estar no centro da defesa da educação como pilar imprescindível da democracia. 



MARIA ELISA MAXIMO

Diretora do Instituto Movimento Humaniza Santa Catarina, Doutora em Antropologia Social e atualmente atua como Secretária Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC).

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